Conforme já dito, no post anterior, um sistema democrático, o princípio de legitimidade é o voto da maioria através das eleições. A partir desse entendimento, por óbvio, o primeiro conceito de democracia que vem em mente é o de “governo da maioria”. Contudo, essa forma de legitimação passou a ser questionada em razão da influência de elementos externos ao processo, que interferem fundamentalmente na manipulação da tomada de decisão pelo cidadão, bem como no seu direito de expressão, troca de ideias e na qualidade do debate público. Segundo Dworkin, um dos maiores defensores da doutrina constitucionalista, “uma minoria poderia destruir a democracia de forma quase efetiva a tirar de uma minoria o direito à liberdade de expressão, quase da mesma forma como se lhe negasse o direito ao voto, por exemplo”. [1] É o que frequentemente acontece quando algumas minorias não tem meios de acesso ao debate público para trazer seu posicionamento e necessidades a esta discussão.

Recentemente, na esteira do movimento constitucionalista, parcela dos juristas passou a compreender que, embora o voto majoritário seja considerado fundamental na democracia representativa, não é suficiente para garantir decisões justas e racionais, pois o princípio da maioria não garante a igualdade política. Entendem que o resultado de uma eleição representa apenas a voz dos vencedores, não necessariamente o bem comum ou o interesse de todos. Um exemplo que costuma ser frequentemente apontado para demonstrar que nem sempre a democracia representativa agiria em benefício da garantia do livre exercício dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente é a experiência negativa da legitimação do nazi-fascismo, onde um governo eleito pela maioria promoveu um regime de exclusão e destruição desses direitos, especialmente no tangente às minorias sociais.

A partir desse entendimento, os constitucionalistas militam no sentido de que, já que as Constituições dos países positivam os direitos fundamentais e sociais da população, o Judiciário (e os tribunais constitucionais, guardiões do texto constitucional) teriam a prerrogativa de sair do papel de “resolvedor de conflitos” e fazer parte da arena política, já que “o constitucionalismo moderno […] confiou à justiça constitucional a guarda da vontade geral, encerrada de modo permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica”.

Para os constitucionalistas, portanto, a democracia significa o governo da maioria legítima, não da maioria simples. O mero fator “escolha da maioria” não constituria uma democracia, a menos que outras condições fossem satisfeitas. Segundo Dworkin, não há consenso sobre quais seriam essas condições; mas, segundo ele, a necessidade de algum tipo de estrutura constitucional que não possa ser alterada pela maioria é certamente um pré-requisito para a democracia. Isso porque, segundo ele, a democracia é um sistema baseado na incerteza. A cada eleição surgem novos políticos, partidos, ideologias, novas propostas e políticas públicas, às vezes em um projeto diametralmente oposto ao anterior.

O constitucionalismo pressupõe que a democracia traz incerteza em relação a cada sucessivo governo eleito e seus diferentes projeto de governo, no que se refere, obviamente, aos poderes legislativo e executivo, cujos membros são eleitos. Assim, propõe que a democracia deve basear-se não em projetos dos governos escolhidos pela maioria, mas sim em uma ampla estabilidade e credibilidade institucionais.[2] Por isso, compreende que o reconhecimento da Constituição como norma jurídica pressupõe a configuração de um instrumento de controle e, por consequência, de limitação de poder.[3] E, com a vantagem de o ser sob a guarda do único poder cujos membros têm mandados vitalícios, ou seja, não sofrem da instabilidade política provocada pelas eleições periódicas.

Por isso, o movimento constitucionalista entende que nos atuais estados de direito, o Estado da maioria deve coexistir com os direitos das minorias, elevados à categoria de direitos fundamentais, uma vez que o pluralismo e as minorias estão presentes, e todos, absolutamente todos , deve ser protegido.[4] O problema é que, com a extensão e generalização do voto popular, os “constrangimentos” constitucionais dirigem-se, como vimos, sobretudo às instituições surgidas do voto popular. Embora a constituição tenha sido originalmente concebida como um mecanismo político de separação de poderes, para regular e limitar o exercício de poderes que careciam de legitimidade eleitoral, hoje ela passou a “funcionar” como um mecanismo jurisdicional de proteção de direitos fundamentais contra o exercício dos poderes que têm legitimidade eleitoral. [5]

O que já se verifica é o início de uma tensão entre democracia e constitucionalismo, na medida em que a primeira acaba por limitar a liberdade de deliberação dos representantes eleitos pelo povo, que, por sua vez, não podem fazer leis que atentem contra os direitos fundamentais, direitos das minorias, ou mesmo dos indivíduos, consagrados na Constituição. [6] Assim, a constituição passa a ser vista como um “ato de desconfiança”, sendo o objetivo dessa desconfiança o voto popular e as instituições dele derivadas; a constituição é vista como uma “garantia contra o povo”, protegendo os direitos constitucionais contra a vontade do povo ou dos representantes eleitos do povo. Desses dois deslocamentos deriva a já mencionada crise de sentido do constitucionalismo. [7]

A base desta crise pode ser expressa com as questões pertinentes colocadas por Russeau: “em nome de qual razão, qual ideal, é possível proibir às pessoas o que elas querem?” A vontade do povo pode ser impedida, não por meio de uma discussão ou resposta baseada em argumentos morais, filosóficos ou sociológicos, mas por meio de uma ação jurisdicional que mobiliza argumentos jurídicos? Em todos esses casos, há sempre duas lógicas conflitantes: por um lado, o Judiciário lembra aos novos representantes do povo seu dever de respeitar os direitos constitucionais e, se for o caso, prevenir violações; por outro lado, os representantes eleitos invocam os conceitos de voto popular, maioria parlamentar e opinião pública. [8]

A chamada disposição constitucionalista é apontada como contraponto à concepção processual da democracia, como “uma técnica específica para limitar o poder com fins garantistas.” [9] Para a teoria do constitucionalismo, é necessário mais do que um procedimento democrático adequado para alcançar resultados justos, também são necessários juízos de valor substantivos que levem em conta os resultados a serem alcançados. Os valores substantivos escolhidos pela sociedade são elevados à categoria de direitos fundamentais em uma constituição rígida e estes, por sua vez, funcionam como limites materiais de deliberação democrática. Sob este ponto de vista, o Judiciário (ou o Tribunal Constitucional) é o intérprete final da Constituição, para o qual a própria Constituição lhe atribui a competência para controlar os atos emanados do Poder Executivo ou Legislativo.

Em resumo: o movimento constitucionalista propõe que o Judiciário, na figura de suas cortes constitucionais, assumam um papel mais ativo na esfera política, com o viés de defender os direitos fundamentais da população previstos na Constituição, ainda que eventualmente o posicionamento da Corte venha exigir a reinterpretação ou supressão do texto legislativo por conflito de constitucionalidade, já que a produção legal, fruto do Legislativo, seria suscetível a injustiças promovidas pela falta de representatividade das minorias no processo democrático, ou uma insegurança social promovida pela mudança periódica de projetos de governo, com a eleição de políticos de diversos espectros ideológicos ao longo das eleições.

[1] DWORKIN, Richard. Constitucionalismo e Democracia. European Journal of Philosophy, nº 3:1, p. 2-11, 1995.

[2] CAGGIANO, Monica. Democracia x Constitucionalismo: Um navio à deriva? Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011.

[3] FERREYRA, Raul Gustavo. Gobernar es igualar isonomía, oportunidades y justicia social en la argentina. UNED. Revista de Derecho Político nº 99. Madrid, 2017.

[4] ERIKSEN, Erik Oddvar. Democratic or jurist made law? On the claim to correctness. ARENA – Centre for European Studies, University of Oslo, Working Papers WP 04/07, 2004. Disponível em: <www.arena.uio.no/publications/working-papers2004/papers/wp04_7.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2021.

[5] DWORKIN, Richard. Constitucionalismo e Democracia. European Journal of Philosophy, nº 3:1, p. 2-11, 1995.

[6] ERIKSEN, Erik Oddvar. Democratic or jurist made law? On the claim to correctness. ARENA – Centre for European Studies, University of Oslo, Working Papers WP 04/07, 2004. Disponível em: <www.arena.uio.no/publications/working-papers2004/papers/wp04_7.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2021.

[7] RUSSEAU, Dominique. Constitucionalismo e Democracia. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), 10(3):228-237, 2018.

[8] RUSSEAU, Dominique. Constitucionalismo e Democracia. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), 10(3):228-237, 2018.

[9] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3ª ed. Coimbra, 2000.