“Justiça Douglas, você deve se lembrar de uma coisa. No nível constitucional em que trabalhamos, 90% de qualquer decisão é emocional. A nossa parte racional apenas fornece as razões para justificar nossa predileção.”[1]

 

A derrubada do precedente Roe vs Wade pela Suprema Corte dos Estados Unidos têm sido debatida como uma questão de direito ao acesso ao aborto livre nos Estados Unidos, mas sua importância está muito longe dessa discussão, e isso é imprescindível que seja compreendido. Na verdade, a discussão sobre o direito ao abordo serve mais como uma cortina de fumaça que esconde o tamanho e a importância do julgamento ali decidido. Vamos em frente entender o cerne da questão.

O governo americano é baseado no princípio do Federalismo, pelo qual o poder é dividido entre o governo federal e os governos estaduais. Pressupõe que existe uma divisão de poderes entre esses governos estaduais e o governo federal, onde é reconhecida uma supremacia do poder federal em detrimento dos poderes locais, tal qual no Brasil, porém lá os governos estaduais gozam de muito mais independência.

Sempre houve estados cuja população tem características mais conservadoras, outras mais progressistas. Uma lei do Texas da década de 70 proibia abortos, exceto para salvar a vida da mãe. O interesse declarado do Texas era proteger a vida do feto. Tal lei foi contestada em ação judicial movida por Linda Coffee e Sarah Weddington, Norma McCorvey (apelidada de Roe para proteger sua identidade). Em uma decisão por 7-2, de 1973,  a Corte considerou que a Décima Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos protege o direito da mulher de interromper uma gravidez antes da viabilidade, aproximadamente às primeiras vinte e duas semanas de uma gravidez.

Mas como o Tribunal chegou a esta conclusão? O processo pelo qual a Corte criou esse direito representou o que é, sem dúvida, um exemplo sem precedentes de “extrapolação judiciária”, e a primeira aplicação do ideário constitucionalista na prática.

A Corte, em primeiro lugar, ainda que admita que “a Constituição não menciona explicitamente nenhum direito à privacidade”, compreende que “certas áreas ou zonas de privacidade, existe sob a Constituição” na “penumbras da Carta de Direitos”, e no “conceito de liberdade garantido pela primeira seção da Décima Quarta Emenda”. Ou seja, reconhece, a partir de uma intepretação subjetiva do texto constitucional, que a Constituição reconhece o direito à privacidade dos cidadãos, ainda que este direito não esteja lá expresso.

Em segundo lugar, a Corte inferiu, novamente de forma subjetiva, que o direito ao aborto faz parte desse direito implícito à privacidade:[2]

“Este direito à privacidade, seja fundado no conceito de liberdade pessoal da Décima Quarta Emenda e restrições à ação do Estado, como sentimos que é , ou, como o Tribunal Distrital determinou, na reserva de direitos ao povo da Nona Emenda, é amplo o suficiente para abranger a decisão de uma mulher de interromper ou não sua gravidez.”[3]

Finalmente, a Suprema Corte americana rejeitou, pelo princípio da supremacia federativa, qualquer lei estadual que impedisse o acesso ao aborto dentro do primeiro trimestre, com base no seguinte texto constitucional:

“Nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis.”[4]

Ou seja, se o direito ao aborto faz parte do direito à privacidade, não pode ser impedido pela força de lei estadual, por submissão ao texto constitucional.

Este é o fator extraordinário da decisão de Roe vs Wade: a Suprema Corte reconheceu que não estava contando com a própria Constituição ao criar, do nada, uma decisão que não podia interpretar do texto constitucional. Apesar de reconhecer abertamente que um direito fundamental à privacidade não existia na Constituição, o Tribunal conseguiu concluir que a Constituição protege o direito à privacidade e ponto final. Em resumo: a Corte concluiu que, embora a Décima Quarta Emenda não inclua um direito à privacidade, ela deveria abranger esse direito e, portanto, o faz. Ao fazê-lo, o Tribunal unilateralmente imaginou e depois criou “direitos” não escritos e invisíveis que surgem desta Emenda simplesmente “do nada”.[5]

Nesse caso, ao se habilitar a inventar direitos implícitos que nenhuma interpretação do texto da Constituição poderia sustentar e, dessa forma, impor este entendimento em detrimento das leis estaduais que regiam o assunto à época, a Corte constitucional se colocou na vanguarda da tomada de decisão sobre questões sociais que a Constituição expressamente confia aos cidadãos por meio do processo democrático, via poder Legislativo: as leis são criadas e alteradas pelos representantes que o cidadão elege majoritariamente, ao se alinhar com suas convicções políticas e ideologias. Este é, basicamente, o espírito do entendimento constitucionalista do qual já tratamos.

Os dois juízes que dissentiram nesse caso o fizeram sob a justificativa de que não compreenderam que a Décima Quarta Emenda projeta o direito à privacidade. Em, em 24 de Junho de 2022, foi basicamente por este mesmo motivo que a Suprema Corte americana reverteu os efeitos do precedente Roe vs Wade, no julgamento Dobbs vs Jackson: O juíz Samuel Alito afirmou, ao justificar seu voto, que “nós sustentamos que [as decisões] Roe e Casey devem ser anuladas. A Constituição não faz referência ao aborto, e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional”.[6]

Tal reversão da decisão não significa, portanto, que o direito ao aborto nos Estados Unidos foi cassado; simplesmente, o que ocorreu, nas palavras do juiz Alito, é que já que a “A Constituição não proíbe os cidadãos de cada Estado de regular ou proibir o aborto”[…] “Roe e Casey arrogaram essa autoridade. Agora anulamos essas decisões e devolvemos essa autoridade ao povo e seus representantes eleitos”. Ou seja, a Suprema Corte rescindiu uma interpretação extensiva feita por aqueles nove juízes, defendendo o direito de cada Estado se regular de acordo com a opinião pública majoritária – o processo da democracia representativa.

A Suprema Corte enfatiza esse ponto em seu parecer derrubando Roe, chegando ao ponto de sugerir que Roe está na raiz da polarização da política americana e do partidarismo de nossos tribunais. Derrubá-lo, argumenta o tribunal, levaria os Estados Unidos um passo mais perto da sanidade nacional – ou pelo menos ao ponto em que os estados podem tomar suas próprias decisões e deixar uns aos outros em paz.[7]

Então, não se trata de um caso de legislação sobre o aborto, ou mesmo um ataque aos direitos constitucionais femininos, ou um passo atrás no processo democrático, como muito da mídia sensacionalista tem anunciado, mas sim uma nova interpretação do papel da interferência do Judiciário no processo democrático.

Grosso modo: “Qualquer sociedade que dependa de nove juízes não eleitos para resolver as questões mais sérias do dia não é uma democracia funcional. Só não acho que uma democracia seja responsável se não tiver um discurso político, racional, respeitoso, decente para resolver esses problemas antes que cheguem ao Tribunal.”[8]

Assim, é fundamental que se compreenda que tal julgamento tem um efeito extraordinário sobre a forma como se tem feito Justiça nas Américas (particularmente as do Norte e Sul), onde a doutrina constitucionalista é amplamente seguida pelas cortes constitucionais, inclusive ganhando características locais na forma do constitucionalismo latino-americano, no nosso caso. O impacto de tal medida deve ainda ser avaliado ao longo do tempo, mas abre um fundamental precedente para que o peso da construção das políticas públicas e sociais volte a estar assentado sobre os poderes eleitos democraticamente, não mais sobre o sistema judicial, ou minimamente abrindo espaço para se discutir o excessivo ativismo que este último poder tem exercido nos últimos anos, amplamente questionado pela opinião pública,

[1] Ray Forrester, The New Constitutional Right to Buy Elections, 69 A.B.A. J. 1078, 1082 (1983)

[2] Roe, 410 U.S. at 152.

[3] Roe, 410 U.S. at 152.

[4]  U.S. CONST., amend. XIV, cl. 1.

[5] LAMPARELLO, A.; SWANN, C. ROE V. WADE: The Case That Changed Democracy. Tennessee Journal Of Race, Gender, & Social Tennessee Journal Of Race, Gender, & Social Justice, V. 5, Iss. 2, 2016.

[6] G1. Suprema Corte dos EUA derruba decisão que garante direito a aborto. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/post/2022/06/24/suprema-corte-dos-eua-derruba-decisao-que-garante-direito-a-aborto.ghtml. Acesso em: 26 de junho de 2022.

[7] SCOTUS. DOBBS, STATE HEALTH OFFICER OF THE MISSISSIPPI DEPARTMENT OF HEALTH, ET AL. v. JACKSON WOMEN’S HEALTH ORGANIZATION ET AL. Disponível em: “ https://www.supremecourt.gov/opinions/21pdf/19-1392_6j37.pdf”. Acesso em 26 de junho de 2022.

[8] Brian Resnick, Anthony Kennedy: The U.S. ‘Is Not a Functioning Democracy,’ NAT. J. (Oct. 4, 2013), http://www.nationaljournal.com/domesticpolicy/anthony-kennedy-the-u-s-is-not-afunctioning-democracy-20131004.