Ei, você que chegou aqui agora: dentro de uma realidade puramente probabilística, são grandes as chances de você ser uma pessoa absolutamente normal, assim como eu (vamos forçar essa barra aqui apenas para fins de argumentação). Ou seja, só mais uma célula bastante fugaz entre as 220 milhões que povoam o grande organismo que chamamos de Brasil, hoje em dia. Mais uma célula especializada que acorda todo dia de manhã cedinho, corre pra não perder a condução lotada que vai a levar no lugar onde passa o dia todo tentando ganhar a vida e pagar os boletos de algum jeito e, onde candidamente, vai contando os quantos dias úteis faltam antes de poder gritar #sextou, baixar o fardinho e poder passar o findi todo com o celular na mão e o churrasco rolando no espeto na casa da sogra.

Já foi bem mais fácil fazer isso. Hoje, além da pandemia, pra qualquer lugar onde se vá nessa nossa sociedade, as chances são bem grandes de você se deparar com uma cena dessas aí, com um lado gritando #forabozo e o outro #luladrão:

Nas redes sociais, a cena é um pouquinho mais parecida com essa.

E quando o povo se reúne nos grupos de whatsapp, fica um pouquinho mais tenso:

Uma realidade um pouquinho distante daquela da expectativa que a gente tinha para a sociedade quando era mais xovem, ou como seu pai reaça dizia que a coisa era antigamente, antes dessa geração de marica, que saudade.

E é muito difícil, lá na qualidade de célula, pra gente entender que forma tem e o que se passa na saúde do nosso grande organismo social: porque as coisas estão como estão, nem para onde vai essa coisa toda, nem o que é certo ou errado ou o que é bom ou ruim. Não temos como, do nosso microponto de vista, entender a dinâmica geral das coisas, e de que forma elas se interrelacionam para deixar o grande brasorganismo doente. A gente até tenta fazer nosso melhor pra tentar ter uma noção do que está acontecendo, mas a informação que chega até a gente, seja pela imprensa, pela mídia, pela Internet ou pelos outros, está tão distorcida e enviesada que não nos leva a lugar nenhum. A gente só sabe que a coisa está muito, muito esquisita, se sente que tá tudo muito errado, e não, a gente não gosta e nem tem mais saco pra essa bobagem toda.

A vida em sociedade nunca foi uma super Disney onde todo mundo era feliz e as coisas funcionavam super bem, nem de longe. Faz um pouquinho mais de 70 anos que a gente vivia a última grande guerra mundial. A ditadura acabou lá por quando eu nasci. Eu ainda lembro do carrinho mega-ultra-cheio do supermercado no dia de rancho na era da hiperinflação, e de ver o muro de Berlim caindo na TV. Lembro bem de não entender absolutamente nada quando vi as torres gêmeas pegando fogo na CNN lá na TV a cabo de casa. E a crise de 2008 veio bem quando eu estava me formando na federal, e arrumar um estágio foi bem complicado pra todo mundo na minha turma com a coisa toda pegando fogo. Vem vindo o tempo, fui funcionária pública (por duas vezes), e tive a oportunidade de ver ao vivo os grandes rolos do Mensalão e da Lava Jato. Agora, tive um filho um pouco antes da pandemia. Onde na vida a gente pensou que um dia seria proibido de sair de casa?

Dificilmente a gente para pra pensar por quantos fatos sociais absolutamente doidos e históricos nós passamos na nossa vida, e eles não tiveram tanta relevância assim por aqui porque somos micróbios de terceiro mundo: moramos na periferia distante do planeta, mesmo.  Não somos protagonistas dessa história, só tentamos ganhar a vida entre as consequências dela. Outra coisa que a gente não se dá conta é que temos por certos e garantidos nossa miríade de direitos humanos, tal como comida no prato, propriedade, direito de ir e vir e ser feliz. Epa, peraí. Muitos filósofos afirmam categoricamente que o século XX foi aquele onde aconteceram as piores violações dos direitos humanos na história da humanidade; em boa parte desses casos, estamos convivendo com os monstros que as perpetraram até hoje. Minha mãe viveu boa parte da vida sem ter luz elétrica em casa, no melhor caso; no pior, não tinha comida, mesmo. Minha sogra nasceu no meio de um bombardeio da Segunda Guerra em Roma, em um hospital sem luz.

Mas afinal, qual a diferença do agora para o passado? Nossos pais, que chegaram a viver com atrocidades que a gente nem sonha, estão putos dos cornos. Nós, que nascemos em berço esplêndido, também. Nossos filhos já nos deixam de boca aberta quando falam os absurdos que pensam. Por que temos a sensação de que nunca antes a coisa foi tão doida e sem sentido quanto está sendo agora?

Talvez, antigamente, a grossa maioria das pessoas fosse protegida pela própria ignorância. Era relativamente fácil viver uma vidinha tranquila, sem ter a mínima noção do que se passava no mundo, sem precisar pensar muito nessas questões de vida em sociedade – cada um contribuía com a sua função de compor o todo, e sem grandes expectativas sobre o processo. Hoje em dia, não mais: nessa sociedade hiperconectada em que vivemos, não podemos mais fugir da informação. Ela nos encontra onde quer que estejamos e, se por acaso tentamos fugir dela, os algoritmos de distribuição estão prontos para nos seduzir e nos obrigar a voltar para a roda. Mal aprendemos a lidar com tanta informação e ela já virou desinformação. Estamos todos ansiosos, raivosos, e todo mundo perdeu a noção. O mais importante: onde foi parar o bom senso das pessoas? O que aparenta é que nós vivemos em uma sociedade composta basicamente de crianças de três anos tendo uma crise de birra no supermercado porque mamãe não quis dar chocolate – e crianças de todas as gerações, boomers, milennials, z’s e x’s estão todos apontando os dedos na cara uns dos outros tentando ter razão na base do grito. Só muda a tal da razão, entre uns e outros.

Precisamos falar sobre isso. Crianças raivosas fazem besteira, e a nossa historia como humanidade já deixou bem claro que somos uma espécie especialista em fazer cagadas quando estamos com raiva. Isso é perigoso, e não, essa história não está distante de nós – o perigo de cagada é real. Os nossos direitos fundamentais como seres humanos não são naturais. São, muitas das outras bases da nossa sociedade, ficções criadas e mantidas por um esforço conjunto da coletividade. Se uma crise tem potencial de segregar essa coletividade, ela tem potencial de destruir tudo que já construímos no sentido do que compreendemos como civilização.

Então, vem comigo, célula. Vamos tentar entender juntos como essa bagunça toda começou, vamos tentar nos tornar micróbios mais bem educados, porque é o esforço conjunto da microbiota que mantém todo mundo feliz dentro do hospedeiro. Células convulsivas, sem nem se dar conta do que está acontecendo viram câncer e matam o grande organismo da sociedade, levando todo mundo pra tumba junto com elas. Precisamos acordar antes que isso aconteça – o clichezão é maroto, mas o perigo é bem real.